sexta-feira, 23 de janeiro de 2015


capitalismo selvagem 

na Petrobrás


Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli (da EPGE-FGV)

O episódio do Petrolão deveria levar a esquerda brasileira a refletir sobre o que realmente significa “ser de esquerda”. Significa focar nos meios – a estatização –, ou priorizar os fins – o bem-estar dos cidadãos desfavorecidos? O péssimo desempenho da Petrobrás e os escândalos recentes demonstram que a empresa ignora os interesses de seu principal acionista – o povo brasileiro.
O péssimo desempenho econômico e financeiro da Petrobrás, os projetos aprovados sem viabilidade financeira, sua utilização como instrumento político, o envolvimento de diretores, fornecedores, políticos e funcionários no escândalo da operação Lava Jato demonstram de que a empresa ignora os interesses de seu principal acionista – o povo brasileiro.
Os primeiros sinais de que havia alguma coisa errada na Petrobras surgiram ainda no primeiro mandato de Lula. A empresa, uma virtual monopolista no seu setor, passou a gastar fortunas em propaganda, como se houvesse o risco de perder fatias de mercado para algum competidor. Em seguida vieram os projetos polêmicos, como a refinaria Abreu e Lima em sociedade com a estatal venezuelana, bem como a compra de plataformas e navios a preços muito acima do mercado.
Mas foi em agosto 2009, quando o governo Lula decidiu mudar o marco regulatório do Petróleo, que as condições ideais para os desmandos recentemente divulgados foram criadas. O bem sucedido regime de concessão então vigente deu lugar ao regime de partilha na exploração da camada do pré-sal. A nova lei do petróleo ampliou o papel da Petrobras estabelecendo uma participação mínima de 30% em cada poço explorado no pré-sal. Diante da imensa necessidade de recursos para fazer face aos vultosos investimentos envolvidos, em setembro de 2010 organizou-se aquele que Lula denominou o “maior leilão do mundo”. A Petrobras recebeu uma capitalização de R$115 bilhões – na ocasião US$67 bilhões. Junto com o novo marco regulatório, ampliou-se a política industrial protecionista destinada a fortalecer a cadeia de fornecedores domésticos.
A justificativa para a modificação do marco regulatório foi que o novo modelo permitiria ao Estado brasileiro obter uma fatia dos recursos extraídos do fundo do mar maior do que obteria sob o regime de partilha. Após o anúncio da intenção de mudar o marco regulatório, sobreveio uma longa paralisia no setor. Durante cinco anos, a ANP não realizou nenhum leilão, seja do pré-sal seja de outras áreas. Somente em maio de 2013, a ANP voltou a promover os leilões de exploração por concessão. A duradoura espera levou algumas empresas estrangeiras que haviam se instalado no país a desistir do mercado brasileiro.
O primeiro leilão do pré-sal foi o do campo de Libra, em outubro de 2013. Ao contrário do objetivo de aumentar a renda do petróleo recebida pelo Estado brasileiro, a mudança do marco regulatório a reduziu, pois desestimulou a competição. Apenas um único consórcio – do qual a Petrobrás representava 40% do total – se apresentou, ganhando o direito de exploração ao valor mínimo estabelecido pelo edital. Se um segundo consórcio tivesse participado do leilão, em caso de vitória teria automaticamente que aceitar a Petrobrás – a principal participante do consórcio adversário – como sócia ao nível de 30% de participação. Não é surpreendente que somente o consórcio liderado pela Petrobrás tenha comparecido.
Embora nunca se vá saber o valor ao qual o martelo teria sido batido caso tivessem aparecido outros consórcios, o governo Dilma considerou o fracassado leilão um grande sucesso. O contribuinte brasileiro, que já havia sido prejudicado por cinco anos de abstinência de leilões, foi claramente lesado por um leilão sem disputa. Como a Petrobrás representava 40% do consórcio vencedor, seus sócios estrangeiros detentores dos outros 60% foram beneficiados pelas regras estabelecidas pelo novo marco do petróleo que restringiu a competição.
Mas as maiores perdas para o cidadão brasileiro vieram à tona somente com a operação Lava Jato. Por ela, descobriu-se que boa parte dos bilhões captados pelo “maior leilão do mundo” foi parar no bolso daqueles que, pelo menos em teoria, estariam defendendo o interesse nacional supostamente ameaçado pelas poderosas multinacionais do petróleo. A abundância de recursos resultante daquela inédita capitalização, num ambiente onde somente empreiteiras domésticas desempenhavam papel relevante nas grandes obras da empresa, criou condições ideais para o surgimento dos sobrepreços identificados. A corrupção na Petrobrás não foi um acidente. Ela decorreu de seu gigantismo.
Do ponto de vista moral o Mensalão e o Petrolão são semelhantes, mas as implicações econômicas do segundo serão muito maiores. A compra de votos do Mensalão atingiu as instituições políticas brasileiras e a auto-estima do cidadão, mas não houve investidores estrangeiros espoliados. O fato de a Securities Exchange Commission ter mostrado mais presteza, ao sair em defesa dos acionistas estrangeiros, do que nossa submissa CVM é sintoma de que o país está longe de um capitalismo moderno. Muitas grandes empresas fornecedoras da Petrobras estão entrando em crise, com desdobramentos profundos sobre seus fornecedores. A Petrobrás terá grande dificuldade para captar os recursos necessários para implantar os pesados investimentos do pré-sal a que se comprometeu. Ou os investimentos serão protelados, ou o financiamento terá que recair sobre os cidadãos, seja via maiores preços dos combustíveis, seja por meio de uma capitalização à qual somente a União compareceria.
O episódio do Petrolão deveria levar a esquerda brasileira a refletir sobre o que realmente significa “ser de esquerda”. Significa focar nos meios – a estatização –, ou priorizar os fins – o bem-estar dos cidadãos desfavorecidos? O petróleo no subsolo é do povo brasileiro. Sua exploração deveria render o máximo de recursos possível, independentemente de qual empresa o retira das profundezas, para que o Estado possa canalizá-los para a educação pública, única política realmente capaz de transformar profundamente uma sociedade.


(publicado no Valor Econômico, 22 de Janeiro de 2015)

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