capitalismo selvagem
na Petrobrás
Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli (da EPGE-FGV)
O episódio do Petrolão deveria levar a esquerda brasileira a
refletir sobre o que realmente significa “ser de esquerda”. Significa focar nos
meios – a estatização –, ou priorizar os fins – o bem-estar dos cidadãos
desfavorecidos? O péssimo desempenho da Petrobrás e os escândalos recentes
demonstram que a empresa ignora os interesses de seu principal acionista – o
povo brasileiro.
O péssimo desempenho econômico e financeiro da Petrobrás, os
projetos aprovados sem viabilidade financeira, sua utilização como instrumento
político, o envolvimento de diretores, fornecedores, políticos e funcionários
no escândalo da operação Lava Jato demonstram de que a empresa ignora os
interesses de seu principal acionista – o povo brasileiro.
Os primeiros sinais de que havia alguma coisa errada na
Petrobras surgiram ainda no primeiro mandato de Lula. A empresa, uma virtual
monopolista no seu setor, passou a gastar fortunas em propaganda, como se
houvesse o risco de perder fatias de mercado para algum competidor. Em seguida
vieram os projetos polêmicos, como a refinaria Abreu e Lima em sociedade com a
estatal venezuelana, bem como a compra de plataformas e navios a preços muito
acima do mercado.
Mas foi em agosto 2009, quando o governo Lula decidiu mudar
o marco regulatório do Petróleo, que as condições ideais para os desmandos
recentemente divulgados foram criadas. O bem sucedido regime de concessão então
vigente deu lugar ao regime de partilha na exploração da camada do pré-sal. A
nova lei do petróleo ampliou o papel da Petrobras estabelecendo uma
participação mínima de 30% em cada poço explorado no pré-sal. Diante da imensa
necessidade de recursos para fazer face aos vultosos investimentos envolvidos,
em setembro de 2010 organizou-se aquele que Lula denominou o “maior leilão do
mundo”. A Petrobras recebeu uma capitalização de R$115 bilhões – na ocasião
US$67 bilhões. Junto com o novo marco regulatório, ampliou-se a política
industrial protecionista destinada a fortalecer a cadeia de fornecedores
domésticos.
A justificativa para a modificação do marco regulatório foi
que o novo modelo permitiria ao Estado brasileiro obter uma fatia dos recursos
extraídos do fundo do mar maior do que obteria sob o regime de partilha. Após o
anúncio da intenção de mudar o marco regulatório, sobreveio uma longa paralisia
no setor. Durante cinco anos, a ANP não realizou nenhum leilão, seja do pré-sal
seja de outras áreas. Somente em maio de 2013, a ANP voltou a promover os
leilões de exploração por concessão. A duradoura espera levou algumas empresas
estrangeiras que haviam se instalado no país a desistir do mercado brasileiro.
O primeiro leilão do pré-sal foi o do campo de Libra, em
outubro de 2013. Ao contrário do objetivo de aumentar a renda do petróleo
recebida pelo Estado brasileiro, a mudança do marco regulatório a reduziu, pois
desestimulou a competição. Apenas um único consórcio – do qual a Petrobrás
representava 40% do total – se apresentou, ganhando o direito de exploração ao
valor mínimo estabelecido pelo edital. Se um segundo consórcio tivesse
participado do leilão, em caso de vitória teria automaticamente que aceitar a
Petrobrás – a principal participante do consórcio adversário – como sócia ao
nível de 30% de participação. Não é surpreendente que somente o consórcio
liderado pela Petrobrás tenha comparecido.
Embora nunca se vá saber o valor ao qual o martelo teria
sido batido caso tivessem aparecido outros consórcios, o governo Dilma
considerou o fracassado leilão um grande sucesso. O contribuinte brasileiro,
que já havia sido prejudicado por cinco anos de abstinência de leilões, foi
claramente lesado por um leilão sem disputa. Como a Petrobrás representava 40%
do consórcio vencedor, seus sócios estrangeiros detentores dos outros 60% foram
beneficiados pelas regras estabelecidas pelo novo marco do petróleo que
restringiu a competição.
Mas as maiores perdas para o cidadão brasileiro vieram à
tona somente com a operação Lava Jato. Por ela, descobriu-se que boa parte dos
bilhões captados pelo “maior leilão do mundo” foi parar no bolso daqueles que,
pelo menos em teoria, estariam defendendo o interesse nacional supostamente
ameaçado pelas poderosas multinacionais do petróleo. A abundância de recursos
resultante daquela inédita capitalização, num ambiente onde somente
empreiteiras domésticas desempenhavam papel relevante nas grandes obras da
empresa, criou condições ideais para o surgimento dos sobrepreços
identificados. A corrupção na Petrobrás não foi um acidente. Ela decorreu de
seu gigantismo.
Do ponto de vista moral o Mensalão e o Petrolão são
semelhantes, mas as implicações econômicas do segundo serão muito maiores. A
compra de votos do Mensalão atingiu as instituições políticas brasileiras e a
auto-estima do cidadão, mas não houve investidores estrangeiros espoliados. O
fato de a Securities Exchange Commission ter mostrado mais presteza, ao sair em
defesa dos acionistas estrangeiros, do que nossa submissa CVM é sintoma de que
o país está longe de um capitalismo moderno. Muitas grandes empresas
fornecedoras da Petrobras estão entrando em crise, com desdobramentos profundos
sobre seus fornecedores. A Petrobrás terá grande dificuldade para captar os
recursos necessários para implantar os pesados investimentos do pré-sal a que
se comprometeu. Ou os investimentos serão protelados, ou o financiamento terá
que recair sobre os cidadãos, seja via maiores preços dos combustíveis, seja
por meio de uma capitalização à qual somente a União compareceria.
O episódio do Petrolão deveria levar a esquerda brasileira a
refletir sobre o que realmente significa “ser de esquerda”. Significa focar nos
meios – a estatização –, ou priorizar os fins – o bem-estar dos cidadãos
desfavorecidos? O petróleo no subsolo é do povo brasileiro. Sua exploração
deveria render o máximo de recursos possível, independentemente de qual empresa
o retira das profundezas, para que o Estado possa canalizá-los para a educação
pública, única política realmente capaz de transformar profundamente uma
sociedade.
(publicado no Valor Econômico, 22 de Janeiro de 2015)